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Há vida na morte

  • 7 de jun. de 2019
  • 2 min de leitura

Atualizado: 17 de jun. de 2019


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Eu tinha 20 anos e havia concluído o ciclo básico na faculdade de medicina saltando de um laboratório a outro sem perceber onde ia dar. Eu tinha avidez em encontrar espaços com a clínica para além das aulas de anatomia, embriologia, farmacologia e patologia. Soube de uma experiência inovadora que um grupo de médicos, enfermeiros e assistentes sociais estavam vivendo no Hospital Pio X da Diocese de Goiás. Pedi para passar as férias de janeiro com eles e esse tempo me marcou profundamente.


Rio das Almas, Ceres (GO)| Crédito: Divulgação


Janeiro de 1979 foi de enchentes. O rio das Almas que margeia a cidade de Ceres transbordou e dificultou ainda mais o acesso às estradas de chão. Fui recebida como aluna e pude acompanhar todo tipo de atividade no ambulatório de ginecologia, nas salas de parto, no bloco cirúrgico e nas enfermarias. O prédio era arejado, amplo e limpo, apesar de velho; ali se respirava agilidade e zelo. Passávamos uns pelos outros sorrindo e a gentileza reinava entre um temporal e outro. Podia perceber intensidade e comprometimento em todos os médicos cada qual com seu sotaque, vindos de Recife, do Rio, de Curitiba, de Porto Alegre e Belo Horizonte. Âncoras para eu mergulhar na realidade.


Certa manhã eu estava acompanhando o Dr. Gil, pediatra. Com semblante sério e compassivo, ele fazia um procedimento numa criança de cerca de 7 meses, muito desnutrida. Naquela época era muito comum encontrar crianças em desnutrição, mas nele se suspeitava que havia alguma obstrução digestiva. Estava bem cuidado, mas muito desidratado. Permanecemos ali em silêncio quando todos os esforços se revelaram vãos. Com a voz mansa o Dr Gil me tirou do choque: “prepare o corpinho numa caixa porque o pai vem buscar para levá-lo no ônibus da tarde”. Era minha tarefa e assim foi feito. Tocar o corpinho miúdo ainda espantada, vesti-lo e acomodar numa pequena caixa de papelão. A morte não poupa. A pobreza não poupa. Podemos nada. Apenas carregar a caixa nas mãos sem largá-la nem por um instante.


Eu eu me dirigi à portaria do hospital que dava para um morro bonito. O verde brotava vivo da terra úmida. Não sei como o homem de chapéu soube que era eu que o esperava. Ao se aproximar levou o chapéu ao peito. Entreguei-lhe a caixa em silêncio. Ele a tomou numa frase: “ foi como Deus quis”. Inclinou-se como que agradecendo e seguiu para a praça com a caixa nas mãos.


A equipe do Hospital Pio X me preparou para não julgar, para ver com olhos novos sem projetar meus velhos conceitos sobre a realidade. E foi aquele pai que me revelou o mistério da aceitação e da confiança incondicional. E eu comecei a compreender o sentido de “foi Deus quem quis!”, para além das minhas crenças.

 
 
 

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