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Sem medo da morte

Atualizado: 6 de ago. de 2019

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Voltava para casa depois de 10 dias viajando. Tudo dentro da mais perfeita previsibilidade. Voo no horário sem atropelos. Embarque rápido.

Sentada e bem afivelada, começo a colocar as mensagens em dia: respostas, recados, agendamentos. Desligo o smartphone e me recosto na poltrona; nada a fazer senão esperar o tempo. Imersa em emoções deixo chegar imagens e histórias vivas que aparecem como num filme. Evoco nomes e a face de pacientes que vi morrer. É porque nesse processo de me tornar doula da morte, trato de examinar quem tenho sido como médica. Reverencio homens e mulheres que fui vendo morrer devagar nas longas visitas em casa ou no hospital. Lembro-me de seus olhares ora cheios de coragem, ora cheios de medo.

De longe, muito longe, escuto o choro de um bebezinho como a me dizer onde estou. Não me lembro de ter tido sono, mas é dali que desperto para perceber um relaxamento profundo e descansador. O piloto avisa que já estamos descendo. O comissário passa checando nossa segurança a bordo.

A aeronave vem descendo e ops...arremete para as alturas de novo. Olho em volta, ninguém parece se preocupar. Nem eu. Da cabine nenhuma explicação. Minutos longos. Não é a primeira vez que passo por esquisitices a bordo, mas dessa vez parece diferente. Olho pela janela e vejo o céu límpido, bem de brigadeiro mesmo. Embaixo umas poucas árvores em áreas extensas de pastagem, vão ficando pequenininhas.

Começo a passar em revista os últimos dias, os meus planos, as últimas passagens compradas, a incrível semana com minha filha, dormindo com ela, vendo-a sair linda para o trabalho. Eu cantarolando uma musiquinha “ sorria, meu bem, sorria” que lhe dá nos nervos, logo cedinho. Ou na semana intensa junto do clã Feldenkrais. No ritual de iniciação do Amortser para receber o manto de doula e nos armarinhos em São Paulo comprando agulhas e lãs para o bordar o manto.

Tudo muda para sempre se esse avião cair.

Sorrio calma, me lembrando do Testamento Vital já no cartório. Valeu pelo processo com minha advogada. Valeu porque minha mãe e minha tia o leram; chorando desorientadas com meu jeito de falar da morte como se estivesse para morrer. Valeu porque minha filha e seu pai estão cientes dos meus desejos e não desejos diante da finitude. Não preciso mais dele já que vou morrer agora sem doença e sem risco de ser hospitalizada.

Ainda sem que expliquem o que se passa, o avião segue para o céu sem fazer a curva da volta. Já avisto o delta do Rio Grande que divide Minas com São Paulo. Meus pensamentos se conectam com meu coração: nenhum sentimento me inquieta. Vou morrer e não sofro. Vejo a intensidade da minha vida, a clareza dos meus propósitos em momentos muito conturbados. E se o avião não cair, nada muda nas minhas intenções. Esse o paradoxo: tudo muda sem mudar nada.

Agora o piloto reaparece dizendo que já pode aterrissar com segurança porque o vento está manso. Desce suave. Eu também desço e caminho pela pista de pouso que parece de flocos de algodão.

E como a morte está pertinho da vida, aparece mamãe no desembarque para me fazer uma surpresa. Sincronicidade, eu envolta nesse tema e a vida me presenteia com a oportunidade de consultar meu mundo interno. E nem morri. Registro esse momento para buscá-lo na memória quando achar que está tudo fora de ordem. Não está.

 
 
 

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