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Nada a Temer


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"Nada a temer

Senão o correr da luta

Nada a fazer

Senão esquecer o medo

Abrir o peito à força

Numa procura

Fugir às armadilhas da mata escura"


Caçador de mim, Milton Nascimento.


Essa poesia cantada do Milton expressa minha alma diante dos cuidados paliativos.


Em 1995, depois de 20 anos vivendo em outras cidades, voltei a morar onde nasci, no interior de Minas. Trouxe minha filha de dois anos que pretendia criar perto da família grande. A doença do meu pai avançara e tive de encarar as suas e as minhas dores. Tudo que eu sabia parecia pouco diante do desafio de manejar seus sintomas fosse com medicamentos, massagens, fisioterapia ou acupuntura. O Hospital Amaral Camargo, em Jaú, tinha se tornado uma referência em tratamento de dor mas não podia me aceitar em treinamento porque eu já havia me demitido do Ministério da Saúde.


O consultório trazia seus desafios e de alguma forma a clientela parecia adivinhar meu propósito de achar soluções para situações difíceis. Passei também a receber pessoas que tinham certeza que eu as apoiaria na decisão de não prosseguir quimio ou radioterapia. Pediam mais que cuidados de fim de vida. Pediam que eu as ajudasse a ficarem integralmente vivas até o fim, e não as deixassem sem ar ou com dor. Clamavam pelo cuidado em casa. Não havia equipes de atenção domiciliar, muito menos de cuidados paliativos.


Em 2000 me deparei com uma família enorme que se dispunha a fazer plantões para cuidar da pessoa querida, que de posse da sua autonomia, desistira da quimioterapia paliativa, queria sossego. Pedi ajuda ao anestesista que atendia no ambulatório de dor HC-UFU para aprender a fazer injeção subcutânea de morfina. Eu nem sabia que a técnica tinha nome: hipodermóclise. Um bom rodízio de cuidadores e ela passou sem dor. O cuidado também implicava em criar alimentos ricos para serem ofertados em pequenos volumes. E treinar os familiares para confortar com almofadas e massagens. Mais que tudo, destinar tempo para sentar-me à beira da cama e ouvir longas histórias sobre a vida e as preocupações sobre o morrer.


Numa sociedade que cada vez mais prega o "vale tudo", essas pessoas queriam decidir suas vidas. Que seus amados entendessem que desistir de tratamentos fúteis não era suicídio. Não era blasfêmia. Meu encontro, em 2014, com a professora Luciana Dadalto, advogada especialista em diretrizes antecipadas de vontade, foi um marco, confirmando o que intuitivamente a gente vinha fazendo: abrir diálogo com todos os envolvidos.


O tabu contra o câncer afasta as equipes de Programa de Saúde de Família, e quando saem das possibilidades terapêuticas são mandados para casa onde ficam sem suporte. Não mudou muito nos últimos anos. A diferença é que agora nos mobilizamos para exigir os cuidados paliativos nos cursos de medicina, e assegurar acesso pleno no SUS.


E nessa busca por ampliar a rede de paliativistas, o NEPI, Núcleo de Ensino Pesquisa e Inovação do Hospital da Baleia, em Belo Horizonte, teve uma iniciativa fantástica: Imersão Prática em Cuidados Paliativos, uma experiência multidisciplinar de 5 dias. Depois de tantos anos trabalhando sozinha, abracei essa oportunidade de estar em equipe. Médicos gentis, enfermeiros especialistas em feridas, psicólogos atuando de braços dados com a clínica, fonoaudiólogas sabidas na arte de ofertar alimentos com segurança e reabilitar a fala e deglutição. A farmacêutica totalmente conectada aos detalhes que garantam a segurança do paciente. Todo cuidado na elaboração dos alimentos pela equipe da nutrição. A assistente social, sabe tudo, resolve o impensável. Pensem numa dentista hospitalar tratando as feridas e infecções de boca. Parece uma fadinha com seu laser em punho indo a cada um!


A médica Cristiana Savoi, que coordena o setor de Cuidados Paliativos, desliza pelas enfermarias como se tudo estivesse calmo, a voz baixa, as informações precisas. Faltam recursos, sobram determinação e criatividade de fazer acontecer. Na maioria das vezes a equipe é chamada tardiamente, porque não temos a cultura de eleger precocemente a abordagem do cuidado paliativo.


Numa tarde daquelas havíamos acabado de avaliar uma senhora, já em cuidados exclusivos. A fisioterapeuta avisara a filha e as netas: "ela tem pouca energia agora. Não é momento para eu estar aqui movimentando-a. É o momento de vocês se despedirem dela". Estávamos no corredor quando a filha veio dizendo "mamãe está indo". Não houve surpresa, mas uma emoção permeou a todos. A mãe morta: abraçar, consolar, chorar, tudo é permitido.


E percebo de imediato a vida imensa que se manifesta na morte. Uma pulsão de cuidado fraterno que se espalha por toda a equipe. Respiro aliviada, tomada por uma sensação enorme de paz. Um quê de contentamento percebendo as ordens do amor no meio do caos. A mesma sensação que tive quando, enfim, papai morreu: eu ria uma alegria de ter cumprido um pacto pela dignidade. O mesmo tipo de alívio que sinto quando sou doula de nascimento. Porque é a mesma vida… a vida que se manifesta quando a pessoa nasce e quando a pessoa morre.


Que estejamos juntos despertando as pessoas para as diretrizes antecipadas de vontade. E que possamos colaborar para ampliar acesso a cuidados paliativos no Brasil.


O Hospital da Baleia faz um trabalho impressionante com recursos do SUS, que como todos sabemos está com tabelas desatualizadas. Então precisa contar com doações. Acesse o site www.hospitaldabaleia.org.br e veja de quantas formas podemos colaborar.


 
 
 

1 comentário


Altino Mayrink
Altino Mayrink
04 de abr. de 2023

Perfeito relato de vida. A constante luta permite que avancemos no desenvolvimento dos cuidados com os seres humanos, independente de onde estejam. O acompanhamento até os momentos finais ajuda ao enfermo a ter mais dignidade nesse momento.

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